Pouco notamos. Porém, muito mais que consumo, aquilo que nos alimenta
também conduz emoções, aprendizado social, evocação de memórias e
pertencimentos
Os hábitos alimentares, afirma o antropólogo norte-americano Sidney
Mintz, são veículos de profunda emoção. Para o autor, a comida e o comer são
centrais no aprendizado social por serem atividades vitais e essenciais, embora
rotineiras. As atitudes em relação à comida são aprendidas cedo e bem. Na visão
de Mintz, esse comportamento alimentar é nutrido por adultos afetivamente
“poderosos”, que conferem um poder sentimental duradouro. Assim, ele explica
que o lugar onde crescemos e as pessoas com quem convivemos vão aos poucos
construindo um material cultural. Esse material dá forma ao nosso comportamento
alimentar que “se liga diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa
identidade social” (2001, p 31). A maneira como nos alimentamos revela
constantemente a cultura em que estamos inseridos.
Ao longo dos anos os hábitos alimentares podem mudar completamente. E
essa mudança desvela as facetas do comer, pois para Mintz esse comportamento
pode, simultaneamente, ser o mais flexível possível e o mais arraigado de todos
os costumes. “Há uma estranha congruência entre conservadorismo e mudança que
nos acompanha no estudo da comida”, explica o autor, que se dedicou a estudar a
função social da alimentação, a partir de espécies únicas como açúcar e soja.
Apesar das evidentes mudanças no gosto e nas preferências de cada pessoa, a
memória e o peso do primeiro aprendizado alimentar, e algumas das formas
sociais aprendidas, talvez permaneçam para sempre em nossa consciência, como
sugere o antropólogo. Para comprovar sua tese, ele cita a madeleine de Proust como o
caso mais famoso.
O francês Marcel Proust atribuiu ao olfato e paladar o poder de convocar
o passado. O escritor do clássico Em
busca do tempo perdido dedicou à madeleine, bolinho de limão Em forma de concha, e ao
chá, o resgate de sua memória de infância. Essa experiência marca sua vida de
maneira indelével, pois ele retoma com vigor o seu exercício da escrita. Antes
desse encontro gustativo, sua carreira estava fadada ao fracasso. Ele vivia
recluso e doente num quarto em Paris, mas a comida lhe restaurou as forças. A
descrição sobre esse momento testemunha o quanto a memória está ligada ao que
comemos: “Mas no mesmo instante em que aquele gole, de
envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que
se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado,
sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes às
vicissitudes da vida (…)” (1983, p. 31).
Na recém-lançada
obra póstuma O Cozinheiro do
Rei (Ed.
Madras), de Zé Rodrix, encontramos a força da experiência proustiana num menino
índio, de aproximadamente 5 anos, chamado Pedro Karaí. Se Proust revive com madeleines na
França, Karaí renasceu com mingau de tapioca com farinha de peixe na tribo dos
Mongoyós, à beira do Rio de Contas, no sertão da Bahia.
Em uma
brincadeira rotineira de pular no rio, o menino bateu com a cabeça numa rocha.
Ficou desacordado, perdeu os sentidos e vivenciou a morte de perto. Ele também estava
num momento crítico, entre a vida e a morte, tal qual Proust, quando alguma
coisa que ele não via, “exalava um cheiro delicioso que penetrava as narinas e
lhe enchia a boca de água”. O olfato e o paladar convocaram o breve passado do
menino, como intuiu Proust, ao ser tocado pela madeleine com
o chá. No caso brasileiro, a visão foi incluída nessa experiência
multissensorial. A comida vai além de saciar o estômago.
A receita que
mudou o olhar de Karaí foi preparada por sua mãe, um desses adultos “poderosos”,
citados por Mintz, que marcou o filho com um poder sentimental duradouro.
Remete também à comida como medicamento, o cuidado e o amor expressos numa
refeição preparada especialmente para alguém. Na descrição, identifico também
elementos do conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), ao falar
sobre o acesso a alimentos de qualidade, tendo como base práticas alimentares
promotoras de saúde (MALUF, 2007, p. 17).
A descrição de
Rodrix, músico e compositor, é rica, poética e emocionante como a de Proust, só
que com a comida brasileira, o que remete implacavelmente a nossa identidade
social, confirmando a tese de antropólogo: comida é memória; comida é cultura.
A mandioca, considerada pelo folclorista Câmara Cascudo, Rainha do Brasil, foi
o elo de ligação com a memória do pequeno índio, trazendo uma nova perspectiva
sobre o que significa comer e, assim como no caso do escritor francês, marcou
sua trajetória radicalmente. Rodrix faleceu em 2009, e uma de suas canções mais
conhecidas é “Casa no Campo”.
A seguir, o
relato de Karaí, o qual considero nossa genuína experiência proustiana:
“Minha mãe trazia nas mãos uma cuia
de cabaça cheia de alguma coisa que eu não via, mas que exalava um cheiro
delicioso, que me penetrava as narinas e me enchia a boca de água. Quando ela
colocou em frente à minha boca, erguendo-me o pescoço para que pudesse nela
encostar meus lábios, a visão da superfície cinzenta e brilhante me encheu os
olhos de lágrimas. O mingau de tapioca com farinha de peixe, feito com todo o
cuidado sobre as brasas de uma fogueira do dia anterior, escorreu por minha
boca, acariciando-me a língua e revestindo de delícias as paredes da minha
garganta. Entrou por meu organismo adentro, enchendo meu estômago de alegria e
paz, fazendo-me perceber, pela primeira vez na vida, o que era a fome e sua
satisfação. Pensei, com minha cabeça de menino índio, que a coisa mais bela da
vida era dar de comer a quem tem fome.
“Nunca havia
sentido apetite (…). Mas de repente me interessava muito esse fenômeno
estranho, que cresce como uma dor e uma falta, e se esgota não apenas pela
quantidade, mas principalmente pela qualidade mais difícil de reter: o sabor.
Misto de cheiro e paladar, com grande influência da visão que dela se tenha, a
comida é o sabor aprisionado, que se libera gradativamente em contato com o
nosso corpo, enchendo de prazer cada um de nós, até que a falta de novo se
instale em cada um, e de novo precise ser preenchida (…). De uma maneira
determinada, tudo estava incluído no cheiro, na visão e no gosto daquele mingau
de tapioca com farinha de peixe, primeira inclusão de meu corpo em um universo
no qual viveria minha vida e do qual extrairia, em doses às vezes díspares, às
vezes insuportáveis, o terror e a felicidade que a todos acompanham nossa
viagem pelo mundo”. (2013, p. 29-30).
Ao trazer essas
experiências para o contexto da divulgação de informações sobre alimentação e
da Educação Alimentar e Nutricional, devemos nos lembrar do diálogo entre
Proust, Karaí e Mintz. As experiências proustianas se repetem permanentemente,
em diferentes cenários culturais. Esse adulto, responsável por transmitir o
material cultural comestível, pode ser representado por diversos atores
sociais, como a família (pai, mãe, avós e tias); merendeiras; cozinheiros; e
nutricionistas. Só não deveria ser representado por indústrias alimentícias que
estão de olho nessa relação duradoura, somente pelo lado do consumo.
Na interseção
entre alimentação e educação, as ideias do sociólogo Carlo Petrini, fundador da
associação Slow Food,
sustentam que o aprendizado deve ser saboroso e com corpo inteiro, não apenas
com o intelecto. No documento Manifesto pela Educação (SLOW FOOD, 2010),
destaco alguns princípios que se alinham com a experiência proustiana, e podem
servir de inspiração para colocar em prática o sabor do conhecimento pela
comida e pelo comer.
Para o Slow Food, a educação “é um caminho íntimo, que
envolve a dimensão cognitiva, experiencial, afetiva e emocional; alimenta-se do
contexto no qual se encontra, valorizando memória, saberes e culturas locais;
desenvolve a consciência de si mesmo, do próprio papel e das próprias ações; e
promove mudanças, gerando pensamentos e comportamentos novos e mais
responsáveis”. Nesse diálogo, convido também o educador Paulo Freire ao sugerir
que não se deve separar o cognitivo do emocional no aprendizado: “estudamos,
aprendemos, ensinamos e conhecemos (…) com o nosso corpo inteiro. Com os
sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com
a paixão e com a razão crítica (1998, p. 8). Mintz, Proust, Karaí, Petrini e
Freire postos numa mesma conversa nos mostram a centralidade de alimentação
para o indivíduo e a sociedade; e como os sentimentos que nos alimentam são
capazes de acessar a realidade e, por vezes, transformá-la.
Referências bibliográficas:
FREIRE, Paulo. Professora sim, Tia não: Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo:
Olho d’ água, 1998.
MALUF, J,S, R. Segurança alimentar e nutricional. Editora Vozes, Petrópolis,
RJ, 2007.
MINTZ, S. Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v. 16, n º47, p 31-42. 2001.
________SLOW FOOD. Manifesto pela Educação. VII congresso Nacional, Albano
Terme, 16 de maio de 2010. Disponível em
http://www.slowfoodbrasil.com/campanhas-e-manifestos/711-manifesto-slow-food-pela-educacao.
PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. São Paulo. Ed. Abril
Cultural, 1982.
RODRIX, Z. O cozinheiro do rei: as aventuras e desventuras de Pedro Karaí
Raposo, entre o Rio de Contas e a Corte de 17773-1823. São Paulo, Madras, 2013.
Texto retirado do site: www.outraspalavras.net
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